Na minha infância, pensou o psiquiatra, as pessoas escalavam-se em três categorias não miscíveis rigorosamente demarcadas: a das criadas, dos jardineiros e dos choferes, que almoçavam na cozinha e se levantavam à sua passagem, a das costureiras e das senhoras de tomar conta, com direito a mesa à parte e à consideração de um guardanapo de papel, e a da Família, que ocupava a sala de jantar e velava cristãmente pelos seus mujiques («pessoas», chamava-lhes a avó) oferecendo-lhes roupa usada, fardas, e um interesse distraído pela saúde dos filhos. Havia ainda uma quarta espécie, a das «criaturas», que englobavam cabeleireiras, manicuras, dactilógrafas e enteadas de sargentos, as quais rondavam os homens da tribo tecendo à sua volta uma pecaminosa teia de soslaios magnetizadores. As «criaturas» não se «casavam»: «registavam-se», não iam à missa, não se afligiam com o ingente problema da conversão da Rússia: consagravam as suas exigências demoníacas a prazeres que eu entendia mal em terceiros andares de prédios sem elevador de onde os meus tios regressavam à socapa risonhos de juventude recuperada, enquanto as fêmeas do clã, na igreja, se dirigiam para a comunhão de olhos fechados e língua de fora, camaleões prontos a devorarem os mosquitos das hóstias numa gula mística.
António Lobo Antunes
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