Uma história

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Eles amam-se, casam-se para se amarem melhor, mais comodamente, ele parte para a guerra, morre na guerra, ela chora, de emoção, porque o amou, porque o perdeu, e zás, volta a casar-se, para amar mais uma vez, ainda mais comodamente, eles amam-se, uma pessoa ama as vezes que forem precisas, precisas para ser feliz, ele regressa, o outro regressa, afinal não morreu na guerra, ela vai à estação, ele morre no comboio, de emoção, por pensar que vai reencontrá-la, ela chora, chora mais uma vez, mais uma vez de emoção, porque o perdeu mais uma vez, e zás, volta para casa, ele morreu, o outro morreu, a sogra está a desprendê-lo, ele enforcou-se, de emoção, por pensar que pode perdê-la, ela chora, chora ainda mais, de emoção, porque o amou, porque o perdeu, ora aí têm o que é uma história...

Samuel Beckett

O Inominável

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"(...) é que só neste momento terei o direito de ficar sossegado no meu canto, a babar-me e a viver..."

"Põem-se as coisas em movimento sem haver qualquer preocupação com a forma de as fazer parar."

"Claro que me é indiferente que Prometeu tenha sido libertado vinte e nove mil cento e setenta anos antes de ter expiado a sua pena. Porque entre mim e esse miserável que troçou dos deuses, inventou o fogo, corrompeu a argila, domesticou o cavalo, em suma, fez um favor à humanidade, espero que não haja nada em comum."


"É mais fácil construir um templo do que fazer descer até ele o objecto do culto."

"Não precisa de raciocinar, só tem de sofrer, sempre da mesma forma, nunca menos, nunca mais, sem qualquer esperança de uma pausa, sem qualquer esperança de morte, é muito simples. Não é preciso raciocinar para não ter esperança."

Excertos do livro,
O Inominável de Samuel Beckett

E quanto à habitual opinião, eu não diria melhor.

Saudades de Silence 4

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Sou daqueles que prefiro o David Fonseca dos Silence 4. Em rigor, fez mais nos dois álbuns da sua banda primogénita do que daí para frente. É claro que não esqueço Someone that cannot love ou no Who are you, e sim, ponho-me aos pulos no The 80's... Mas a verdade é que do experimentalismo que é tão visível nos seus álbuns, apenas se manteve a sonoridade. Nas letras de Silence 4, principalmente no primeiro álbum (apenas publico aqui o segundo para efeitos que irei já explicar) existe um claro experimentalismo poético. Em Angel Song - ouço amiúde - ou em Old Letters, experimenta-se um Romantismo másculo, seco, menos lamechas se preferirem, e que é mais tocante. Mas independentemente de se concordar ou não, o que é facto é que este Romantismo é raro na música portuguesa. Temos qualquer coisa de Sérgio Godinho ou Jorge Palma, e depois os trabalhos de Pedro Abrunhosa. E está tudo. E podia-se estar melhor. É uma pena que, depois de se editar um álbum chamado Only pain is real, esta veia se tenha perdido num bolorento Superstar, todo luzes, todo brilhos, por demais mainstream... Bem sei que os top's é que mandam, mas há sempre dois ou três que furam a lógica da democracia artística. A arte não é democrática. Democratizada, dá nisto.

Especial em todas as línguas

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Não há equívocos. Esta entrevista é de um homem do futebol que é maior.

A transcrição de alcoviteiros

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Trata-se de uma grande bisbilhotice, que é o nível médio do jornalismo recente. Contudo, e ainda que não subscrevendo a prática - eu não estaria a ser coerente -, isto acontece em todo o lado onde haja um partido português. Ou pelo menos, no triunvirato do poder. É do nojo... E assim vamos andando, num regime que (surpresa!) é parlamentarista...

A temporada de F1

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Vi hoje, o último grande prémio prémio da temporada, em Abu Dabi. Nao via um grande prémio há anos. O novo sistema de pontuações, mais próximo do Moto GP, e as regras implementadas nos carros, tornaram o campeonato muito mais interessante (ainda que ache que o sistema KERS deveria voltar). Também é verdade que chateia ver um Ferrari sem velocidade de ponta para ultrapassar um Renault, mas antes assim. Hoje, quatro corredores poderiam ganhar, até à duas semanas atrás, cinco poderiam ganhar. Ganhou o que estava em terceiro lugar ao arranque: Vettel, o mais jovem campeão de sempre. O grande derrotado foi Alonso, que precisava de fazer quarto e fez sétimo (atrás dos dois Renualts). Tempo ainda para referir que Abu Dabi à noite é cinematográfico! Se para o ano as regras de pontuação e mecânica dos carros se mantiverem, a F1 recupera mais um fã.

As sombras platónicas

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Na sociedade do Photoshop, vale a pena olhar para "esta" - porque não pode ser a original - Susan Boyle. Anda por aí muita cosmética e perfeição... Já há muito que esta sociedade, incapaz de chegar ao topo, ou sequer vislumbrar nesga, se entretém a fazer das sombras coisas bonitinhas.

O fundo verdade daquele Boato

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Uma excelente notícia este Onde mora o Mundo, para pessoas que como eu, compraram o Boato (aquele comprar de ir à loja e pagar) sem ficarem defraudadas. Aquela coisa no São Luiz está divinal. De JP Simões, acompanhado como está, espere-se sempre o melhor.

Mau Agoiro

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"Afinal a campa é a expressão derradeira do ser humano."

"Aquilo a que chamamos "Terra Natal" é muito mais susceptível de ser vivido do que os simples conceitos de Pátria ou Nação(...)"

"Portanto, desatei a correr, fugi, safei-me pelo portal do lado Sul, corri como havia muito tempo não corria, corri e, por fim, fiquei feliz por saber para onde..."

"Após algumas oscilações que, por algum tempo o levaram a aproximar-se de uma dissidência pró-comunista, assumiu uma posição liberal de esquerda, que foi sofrendo algum desgaste ao longo de duas décadas, mas que se manteve reconhecível. As suas próprias contradições levaram-no, como a muitos outros, a um denominador comum, e que diz: A vida continua."

"Nó pintámos muito fachadas, que antes não tinham cor. Arte não é um pouquito de falsificação sempre? Mas compreendo que a arte alemã tem de ser cem porcento."

"(...) o cheiro a mofo da mania nacional de ter sempre razão acumulada desde há séculos, não o satisfaziam."

"E o facto de ele ter sido porta-estandarte aos catorze anos, e ela aos dezassete membro da Organização das Juventudes Comunistas, viam em ambos como a deformação congénita da geração a que pertenciam..."

"És capaz de ter razão, Alexandra, nós, os alemães, não temos veia para a alegria."

"A prova concludente da força militar deixa simultaneamente perceber a impotência do pensamento ocidental."

"(...) usando aquela caligrafia de Sutterlin que também nos impingiram na escola, ao Reschke e a mim, e de que nos ficou o hábito, até que depois do fim da guerra, graças à reeducação democrática, o perdemos juntamente com outros maus costumes."

"Não! Isto já não é a nossa ideia. Aqui recupera-se pela força económica o que se perdeu pela guerra. Claro, tudo isto decorre pacificamente. Nada de tanques, nada de stukas em acção. Não há nenhum ditador, quem domina é só a economia livre de mercado."

"(...) fomos atirados para a luta final a ocidente do Oder. E por acaso - Reschke, estás a ouvir! - pura e simplesmente por acaso, não graças à Providência, safámo-nos (...) mas o irmão de Alexandra, enquanto resistente, fora morto a tiro, com dezassete anos tal como nós, e os irmãos do Reschke estavam mortos desde o Verão de 43 (...) eles encontraram o seu fim, nós não."

Excertos retirados do livro "Mau Agoiro" de Günter Grass


Este Nobel alemão que, anteriormente, não me tinha convencido deveras, apareceu-me na livraria Wook do Dolce Vita de Lisboa (boa livraria), com este livro, edição antiga de 2000 ainda em escudos, exemplar único, e qual refugo: muito barato. Assim Günter Grass me fascinou economicamente para mais uma aventura pela Alemanha do pós guerra. Em relação ao livro, é mais um que descreve com uma comicidade subtil, essa Alemanha dividida, quer geograficamente quer ideologicamente. Uma Alemanha tensa, voraz para com a Polónia, e, também é justo dizê-lo, envergonhada. Politicamente, o livro debruça-se sobre a Alemanha do fim do muro, a proximidade da queda da URSS, a Polónia e os seus sentimentos profundamente nacionalistas e católicos - ou devo antes dizer complexos defensivos? - a primeira Guerra do Golfo, a entrada, de patrocínio alemão, da Ásia na Europa e a Ecologia. Muitos temas? Sim. Todos eles envoltos numa história linear, a da formação de uma Sociedade Germano-Polaca dos cemitérios. Nesse capítulo, a história recai muito sobre aspectos económicos - o que a pode tornar aborrecida -, mas é necessário que se extraia dela o seu carácter ideológico: o da impossibilidade de uma verdadeira cooperação Germano-Polaca. Com esta leitura, confirmei que Günter Grass é um escritor de tema; alguém essencial para a compreensão da Alemanha do pós guerra, e da Europa da segunda metade do século XX. Mas se isto não lhe interessa, o melhor é ler outro escritor. O estilo é também interessante pois o narrador, que é o próprio Grass, parece sempre narrar a contragosto esta história, dando-lhe um carácter cómico. Uma comicidade triste: a de relembrar o passado sofrido e as chagas da sua geração. Um livro interessante para os interessados; um livro que pode suscitar debate entre quem o lê.

A Peste

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"Continuavam a fazer negócios, preparavam viagens e tinham opiniões. Como poderiam ter pensado na peste, que suprime o futuro, as viagens e as discussões? Julgam-se livres e nunca alguém será livre enquanto existirem os flagelos."

"Mas o que são cem milhões de mortos? Quando se faz a guerra, mal se sabe já o que é um morto. E, visto que um homem morto só pesa se o vimos morto, cem milhões de cadáveres semeados através da História não passam de um fumo na imaginação."

"(...) sofríamos duas vezes: o nosso sofrimento em primeiro lugar, e, em seguida, aquele que imaginávamos aos ausentes - filhos, esposas ou amantes."

(...) reintegráva-mos , em suma, na nossa condição de prisioneiros, estávamos reduzidos ao nosso passado, e ainda que alguns de nós tivessem a tentação de viver no futuro, rapidamente renunciavam, tanto pelo menos quanto lhes era possível ao experimentarem as feridas que a imaginação finalmente inflige àqueles que nela confiam."

"(...) era então atirado sem transição para o mais espesso silêncio da terra. Não tivera tempo para o que quer que fosse."

"Com a ajuda da fadiga, ele deixara correr as coisas, tinha-se calado cada vez mais e não mantivera a sua jovem mulher na ideia de que era amada. Um homem que trabalha, a pobreza, o futuro lentamente fechado, o silêncio dos serões à volta da mesa - não há lugar para a paixão num tal universo."

"Mas esta porcaria desta doença! Até os que não a têm trazem-na no coração."

"Mas chega sempre uma hora na História em que aquele que ouse dizer que dois e dois são quatro é punido com a morte."

"Agora sei que o Homem é capaz de grandes acções. Mas, se não for capaz de um grande sentimento, não me interessa. (...) é incapaz de sofrer ou de ser feliz durante muito tempo. Portanto, não é capaz de algo que valha a pena."

"A peste, é preciso dizê-lo, tirara a todos o poder do amor e até o da amizade. Porque o amor exige um pouco de futuro e, para nós, já não havia senão instantes."

"Já não havia lugar no coração de todos senão para uma esperança muito velha e muito triste, a mesma que impede os homens de se deixarem ir para a morte e que não é mais que a simples obstinação de viver."

Excertos retirado da obra "A Peste" de Albert Camus

Talvez a obra cimeira de Camus, A Peste é um tratado alegórico à humanidade. Num mundo sem esperança e isolado, que é Orão, a cidade setiada pela peste; desenvolve-se a história de personagens tocantes que, procurando buscar algo mais que a sobrevivência, se tornam fascinantes dentro do enredo. A obra, de carácter vincadamente Existencialista e Absurdista, debruça-se sobre o existencialismo na sua forma colectiva, em contraponto com o Estrangeiro. A proximidade da morte, mais, a discricionariedade da mesma, são o ambiente perfeito para a narrativa filosoficamente empenhada no sentido da vida. Com vários episódios tocantes, descreve-se como a brutalidade de uma sociedade flagelada e desesperançada rouba o sentido terno da vida. Deste modo, o livro acaba por ser, como a contracapa o diz, uma "trágica alegoria de um tempo consagrado à inumanidade. O Nosso.". A narrativa pareceu-me algo previsível, o que em nada definha a obra, até porque o fim é realmente comovente. Descreveria este romance como uma obra devota ao Bem, à Verdade e ao Homem. Obrigatória.

Um conselho poético

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Quando li isto, senti-o deveras. Houve uma altura em que escrevi uns poemas.

Quando se tem uma ideia é ainda cedo para escrever poesia. É preciso esperar que ela fuja de nós, nos engane ou, melhor, nos deslumbre. Então é o momento de persegui-la, de tentar o poema.

Ángel Crespo