Pena de viver assim

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"(...) ela tem nojo da vida, a vida conspurca."

"É preciso que seja ele a encontrar para si, parando de chorar, a coragem de dizer porque voltou."

"(...) está cheio de rancor ao pensar não poder esperar nada de melhor das filhas de uma mãe como aquela."

"(...) não tanto por ser difícil arranjar uma qualquer razão, mas por pensar que ele talvez não se tenha vestido de preto por respeito em relação a ela, para não lhe colocar debaixo dos olhos o luto por aquela outra mulher."

"(...) o acto impressionara-a menos do que a ideia de poder praticá-lo."

"Precisamente porque esse mal, previsto, temido e esperado de um momento para o outro, lhe faltou, ela sofreu um suplício."

Expressões do conto Pena de viver assim de Luigi Pirandello

Numa das minhas incursões pela Wook, deparei-me com este conto que, por me ser desconhecido o autor, parei para espreitar. As minhas experiências com literatura italiana não ajudavam à decisão favorável, mas a chancela "nobélica" do escritor ajudou-me a tomar a decisão. Acabei por comprar um conto de linguagem e escrita simples, sem sortilégios estilísticos, mas que comporta uma densa mensagem. Na verdade, um dos contos psicologicamente mais densos que até hoje li. Sem o decoro estético de Tchékhov, e parece-me lícito compararem-se, Pirandello procura descrever uma face real e escondida dos nossos sentimentos. Durante a leitura, senti sempre que aquilo que o escritor queria mostrar como real era sempre o menos óbvio, e que depois invertido, nos parecia óbvio. É este o grande malabarismo desta sua escrita.

A história trata da Senhora Leuca, abandonada pelo marido à 11 anos, e que agora o vê de regresso, na miséria e com três filhas de outrem. Nas vilas italianas da década de 20 e 30, Pirandello faz desfilar a verdadeira caridade, a expectativa, o ciúme e a solidão. Tudo corporizado na Senhora Leuca. Assim, Leuca é pressionada pelo advogado e pelo pároco da localidade a aceitar de volta o marido, coisa que faz por mera caridade, num esforço de indiferença. Contudo, Leuca não quer sentir o deleite e a lisonja de ser considerada uma altruísta, sente um horror cristão pela vaidade da prática caridosa: ponto fulcral da apreciação que Pirandello faz da verdadeira caridade. Para sublinhar isso mesmo, Leuca acaba por ter pena dos miseráveis que antes ajudava e que deixara de poder ajudar. Essas dores e dúvidas são o espinho que valoriza a caridade. Para Pirandello, a caridade parece necessitar de provocar dor a quem dá; não podendo ser vista como manifestação de opulência. Aquando do regresso a casa, Leuca, esperando um comportamento devasso do marido, depreende-se com um carácter respeitador e compungido, o que a surpreende e provoca. Nasce um leve ciúme, e uma questão: será que Leuca é tão pouco atraente para o marido a desprezar? No fundo, ainda que fosse expectável que Leuca pretendesse afastar-se o mais possível do marido, o que ela pretendia mesmo era poder renega-lo, algo que a atitude cortês do marido impedia. Este é possivelmente o aspecto mais interessante do conto, juntando a alma feminina despeitada e o ciúme. Mesmo quando Leuca se apercebe disto, ela insurge-se e envergonha-se de si própria. Assim Leuca voga na solidão. Quer estar só, mas quer poder escolher estar só; não quer que a solidão se lhe imponha.

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