Fumo

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"E era por isso que Litvínov estava tão sereno e simples, olhava à volta tão confiante. Porque a sua vida estava tão claramente disposta à sua frente, porque o seu destino estava determinado e porque estava orgulhoso desse destino e satisfeito como se está satisfeito de um trabalho feito pelas nossas próprias mãos."

"... durante dez séculos a Rússia não produziu nada, nem em governo, nem em leis, nem em ciência, nem em arte, nem mesmo em artesanato... Mas espere, tenha paciência: tudo virá. E porque virá, posso perguntar? Porque nós, pessoas educadas - não prestamos para nada, mas o povo... oh, é um grande povo! Vê aquele camponês? Dali é que há-de vir tudo."

"Dêem-nos um desenvolvimento normal! Mas aonde é que o vamos buscar, quando a própria primeira acção histórica do nosso povo - chamar príncipes do outro lado do mar para o governar - já é irregular, anormal e repetida em cada um de nós até hoje?"

"... aqueles dias em que, ainda querendo duvidar e tendo medo de acreditar, com um êxtase palpitante, um pouco receoso, via como surgia aquele amor, grande e dominando irresistivelmente tudo à sua frente, produzindo por fim uma inesperada felicidade."

"Na verdade ele não estava nada a pensar assim e apenas repetia maquinalmente aquelas frases batidas,, como se quisesse ver-se livre de outros pensamentos mais angustiantes."

"Começou a censurar-se impiedosamente mas logo se dominou. «Isto é fraqueza», pensou. «Agora não é o momento para censuras Tánia é a minha noiva, confiou no meu amor, na minha honra, estamos ligados para sempre e não podemos, não devemos separarmo-nos». Imaginou vivamente todas as qualidade de Tatiana, pensou nelas, contou-as; tentou despertar em si o amor e a ternura."

"«Sim Tánia, estou perdido. Todo o meu passado, tudo o que me é caro, tudo o que vivi até agora - está perdido para mim, tudo está destruído, arruinado, e não sei o que me espera amanhã. Acabas de me dizer que deixei de amar-te... Não, Tánia, eu não deixei de amar-te, mas foi outro sentimento terrível, irresistível, que caiu sobre mim torrencialmente. Lutei enquanto pude.»"

"«Fumo, fumo», repetiu ele algumas vezes: e, de súbito, pareceu-lhe que tudo era fumo, tudo, a sua própria vida, a vida russa - tudo o que era dos homens, e especialmente tudo o que era russo. «Tudo fumo e vapor», pensou «tudo parece mudar continuamente, em toda a parte novas formas, acontecimentos, mas no fundo é tudo o mesmo; tudo corre tudo se apressa para qualquer parte - e tudo desaparece sem um rasto, nada atingindo; o vento muda - e tudo se lança na direcção oposta, e de novo começa o mesmo jogo incessante, ansioso e fútil.»"

"O velhote ficou contente por ver o filho, na medida em que se podia alegrar um homem já com a vida acabada."

Excertos do romance Fumo, de Ivan Turguénev


O típico romance de Turguénev é um excelente compêndio da vida aristocrática de São Petersburgo e da Rússia da segunda metade do século XIX, onde já pontificam aquilo que seriam as futuras tendências comunistas e populares Russas do século XX. Ademais, o livro retrata ad nauseam a obsessão francesa da nobreza e a sua futilidade ociosa, que transtorna o homem questionador. Mas este é sem dúvida um romance de cânone. A diagnose política e social serve-nos apenas de brilhante pano de fundo a uma história de amor febril e dramática - típica da literatura Russa - que se estabelece a partir do reencontro de dois antigos enamorados. O mote é precisamente esse: o desarranjo emocional e psicológico provocado pelo encontro, que surge na figura de Litvínov como um regresso inconveniente ao passado. Um homem que redesenha a sua vida e que se confronta com o desejo reacendido do passado. Num triângulo amoroso entre o passado e o presente, o final acaba aberto e morno - uma sensação sublime de banalidade, talvez - oferecendo uma vivacidade ainda mais real a um romance já de si robusto. Fez-me lembrar subtilmente a Insustentável Leveza do Ser, e é o melhor romance que li sobre amores do passado.

O Terceiro Reich

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"Quando da varanda observei que a grande massa dos banhistas empreendia a retirada para os hotéis e para os parques de campismo, desci à praia. Aquela hora é triste e os banhistas são tristes: cansados, fartos de sol, viram o olhar para a linha de edifícios como soldados antecipadamente convencidos a sucumbir; os seus passos cansados que atravessam a praia e o Passeio Marítimo, prudentes, mas com um toque de desprezo, de fanfarronice diante de um perigo remoto, a sua peculiar maneira de se meterem pelas ruas laterais onde procuram imediatamente a sombra, conduzem-nos directamente - são uma homenagem - ao vazio."

"Na sua voz noto rancor e tristeza; a minha explicação, conciliadora, só lhe causa desprezo."

"- Quando morreres, Udo, serás capaz de dizer «volto ao sítio de onde venho: o Nada».
- Quando uma pessoa está a morrer é capaz de dizer qualquer coisa - respondi."

"- E que é ser um alemão?
- Não sei exactamente. É, à partida, algo difícil. Algo que temos esquecido paulatinamente."

"O que é que eles têm a ver com este hotel que cai aos bocados? Nada, mas ajudam: confortam. Prolongam o adeus até à eternidade e fazem com que recorde velhas partidas, tardes, noites, das quais só resta não o triunfo nem o fracasso, mas um movimento, uma finta, um choque, e as palmadas dos amigos nas costas."

"E o que é que aconteceu?, perguntei eu, surpreendido. Nada. Beijou-te? Tentou, mas dei-lhe uma bofetada. Ingeborg e eu rimo-nos muito, mas depois a mim fez-me pena."

Excertos de O Terceiro Reich de Roberto Bolaño

Uma personagem principal confundida, desinteressada, introspectiva e amoral, envolta numa linha narrativa - que se constitui sob a forma de diário - absurda, sarapintada por personagens enigmáticas. Eis O Terceiro Reich de Bolaño; um livro vincadamente da escola absurdista ou surrealista, com um vocabulário simples, onde o principal foco de interesse se circunscreve ao narrador e ao seu jeito errático, passando levianamente sobre os acontecimentos, demasiado aborrecido para especular sobre quaisquer consequências. Infelizmente, a história acaba por ser, também por isso, um pouco pobre e repetitiva, e salvo raras excepções, nunca alimenta um acontecimento que nos prenda a mais de dez ou vinte páginas. Enfim, uma obra com uma mensagem estética e literária - iconoclasta face a Garcia Marquez - muito definida mas que, sem o enredo e o detalhe psicológicos que se exigem deste estilo, fica muito aquém de Camus, Sartre, Nietzsche ou Dostoievski, grandes escritores/pensadores neste registo.