Saio da janela do meu quarto, e vou para o meu pequeno espaço. Os vidros reflectem luzes de grandes companhias que prestam serviços aos Homens. São bons serviços. E não me tornam um ser livre. Não tornam os Homens livres. Para essas grandes companhias trabalham muitos homens que dependem das grandes companhias, nenhum deles é livre. E os donos dependem dos trabalhadores, e das outras companhias e das outras coisas todas que o mundo tem. Quantas foram as pessoas escravizadas para eu poder hastear umas quantas luzes de natal?
Apetece-me negar a filosofia existencialista, suspeito sim. Sei que os Homens estão condenados. Estão condenados sim. E não é a morte que nos condena. Estamos condenados a não ser livres. Somos por tudo condicionados. Um homem pode ser livre sim, se for completamente feliz adormecido numa completa loucura. Mas nem esse homem se apercebe que é livre, porque lhe basta ser completamente louco para não ter a capacidade de se aperceber que é o único homem livre da Terra.
E eu, que tenho tantas mais liberdades que tantos homens, e tão poucas face a outros poucos, mais livres que eu, não sou livre também.
Acredito que a lei justa faça dos Homens seres livres, mas não acredito que os Homens façam a lei justa, não acredito que se todos os Homens tivessem essa vontade, alcançassem tal feito.
Não acredito em Deus, mas suponham todos por um momento que lhe tinha fé. Dele dependia, mesmo que do Deus mais perfeito e livre se tratasse, ele era perfeito, eu não, e perante ele, não era livre por minha fé ou por meu defeito.
Se eu amar toda a vida, uma mulher não livre por ser mulher, tal como eu não sou livre por ser homem e não Deus, serei eu livre nesse instante em que amo? Talvez por um instante. Mas o que é o Amor que nos faz livres? Por Amor se dá e se sofre. Temos de dar para ser Amor, temos de nos dar, não como uma obrigação imposta, mas por uma obrigação límpida que é o mais perfeito Amor, e a obrigação se mantêm. O amor não nos faz livres por uma estranha condição que é nunca nos bastarmos a nós mesmos para amar.
Ser feliz é ser livre, mas por mim vos digo que não sou eternamente feliz. E como o desejo como todos vós. E vós? Não são felizes eternamente certamente, e a felicidade não depende só de nós, mesmo que achemos que a nossa felicidade está só em nós mesmos, basta sermos incansáveis em desejo, basta sermos descontentes no sonho, e já o sonho que nos faz felizes nos faz escravos, e já o desejo que perseguimos nos faz descontentes na constante perseguição, e já o prazer que é prazer e nos faz felizes nos escraviza.
A inteligência e o conhecimento bem nos têm livrado de alguma desgraça, de algum mal, de algum azar, do desconhecido. Adia-se e vai-se adiando tudo o que queremos evitar, e qual faca de dois gomos potenciamos todo o mal que podemos fazer a nós mesmos. Acresce a isto que não se adia o cansaço de uma tristeza, o cansaço do sofrimento, o cansaço de não ser livre. E falo de um cansaço que pesa na alma e a prende.
Quando escrevo e penso, que eu tento pensar muito, só ganho consciência, não liberdade. Conheço gente mais corajosa que eu, e mais cobarde também. Conheço gente que me acha estranho e “tonto” como carinhosamente até me podem chamar. Reconheço-lhes liberdade para opinar sobre mim mas só tento ser um pouco mais livre. Talvez não valha a pena, sou tão escravo como eles, e talvez mais, se eles nunca se aperceberem de quão escravos se encontram na sua condição humana.
Depois as coisas, que são coisas sem sonhar, sem desejar, sem querer ser nada, quase que existindo sem pedir a existência, e à lei da gravidade estão sujeitas, à lei da morte perecem, à lei da erosão se expõem e à lei do esquecimento estão votadas.
Queria ter dito tudo nestas pequenas considerações sobre liberdade e não posso. Queria nestas pequenas considerações dizer tudo sobre escravidão e não consigo.
Estou inquieto, a cadência de existir impele-nos à escravidão de existir assim. Assim tão diferentes na humanidade que conservamos em nós, e assim tão iguais no cativeiro do ser.